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Investimentos

Wall Street agora odeia o lucro. E isso é uma péssima notícia.

Uma das mais fortes tradições de negação da Ciência ganhou força nos últimos anos. Embora se trate de algo tão grave quanto, erra quem pensa que estou falando das mirabolantes teorias da Terra plana.  Muitas das empresas que amamos e odiamos nasceram como uma ideia. É um modelo de negócio que as transforma em realidade, […]

Uma das mais fortes tradições de negação da Ciência ganhou força nos últimos anos. Embora se trate de algo tão grave quanto, erra quem pensa que estou falando das mirabolantes teorias da Terra plana. 

Muitas das empresas que amamos e odiamos nasceram como uma ideia. É um modelo de negócio que as transforma em realidade, estabelecendo como ela sai do papel e gera lucro. Existem métodos similares a uma ciência por trás disso, mas no estado atual da economia parece que o mercado foi tomado por negacionistas.

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MODELOS DE NEGÓCIO

Em 2010, o suíço Alexander Osterwalder publicou uma metodologia desenvolvida junto a outros diversos pesquisadores e empreendedores chamada Business Model Canvas. Lançada como um livro de ideias bem pragmáticas, a obra vinha acompanhada de um quadro dividido em 9 categorias a serem preenchidas. 

Uma vez estipuladas, essas 9 variáveis poderiam ser combinadas umas às outras para definir uma estratégia racional de como levar o negócio a público. Nessa e em outras estratégias do gênero, como a Lean Startup, o mercado é corretamente considerado soberano. 

A verdade sobre a prosperidade a longo-prazo de um negócio jamais pode sair apenas da cabeça de seus fundadores, devendo ser construída a partir de interações contínuas com os consumidores. Isso, em partes, é o que nos leva à cultura prevalecente na economia digital: estamos todos em um eterno “beta”.

No jargão técnico, “alpha” é a primeira versão de um produto e “beta” é um protótipo mais polido, pronto para testes públicos. Ocorre que o ritmo de inovação é tão acelerado hoje que não temos mais sequer a noção de quando o desenvolvimento de um produto digital chegou ao fim. 

Estamos sempre em eternos testes e readaptações dos serviços que usamos, dos aplicativos que baixamos, etc. E isso não seria necessariamente ruim, se a conjuntura econômica fosse diferente. Ocorre que a injeção massiva de liquidez nos mercados na última década fez muitos esquecerem da razão primordial de existência de uma empresa privada: a busca pela lucratividade.

OS EFEITOS DO LUCRO

Nesse sentido, é impossível não invocar um dos mais célebres trechos escritos pelo filósofo escocês Adam Smith:

Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro e do padeiro que esperamos o nosso jantar, mas da consideração que ele têm pelos próprios interesses. Apelamos não à humanidade, mas ao amor-próprio, e nunca falamos de nossas necessidades, mas das vantagens que eles podem obter.

Em suma, respeitados alguns princípios éticos básicos, não há nada de errado com a busca pelo lucro. Na maioria dos casos, ele é responsável pelo pão que chega a nossas mesas. Logo, o que poderia nos tirar desse caminho de prosperidade?

Crédito artificialmente barato e expansão desenfreada da base monetária, a famosa “impressão de dinheiro a rodo”. Para Hayek, essas seriam as principais causas de má alocação dos recursos financeiros, que ele chamava de malinvestments

Com base na teoria do economista, na presença desses fatores os incentivos econômicos começam a ser desalinhados por intervenções artificiais na dinâmica de preços, ao ponto de empresários e consumidores tomarem ações economicamente irracionais.

Trata-se, inclusive, do que ocorreu em crises relativamente recentes como a bolha da internet (1999) e o crash das subprimes (2008). Comportamentos como os observados nesses eventos jamais ocorreriam nas condições naturais de mercado. 

Os preços são o maior artifício para a organização de uma economia aberta, pois conseguem sintetizar o conhecimento disperso por toda a sociedade sobre um determinado bem ou serviço. Seria impossível buscarmos todas as informações necessárias para a tomada de uma decisão econômica racional se fôssemos obrigados a pesquisar tudo sobre todas as coisas que consumimos.

O que torna as trocas econômicas possíveis em mais larga escala é justamente termos no preço uma variável que comunica o valor relativo de mercado de algo, tornando possível compará-lo com todos os demais. Se políticas são construídas de forma a alterar indiscriminadamente os preços, seja do dinheiro (os juros) ou dos bens em geral (com a inflação), torna-se inviável ao empreendedor tomar decisões ótimas sobre o que produzir e ao indivíduo sobre o que consumir.

DISTORÇÕES NO MERCADO GLOBAL

Embora essas sejam concepções relativamente claras para consumidores conscientes ou para os estudantes da boa ciência econômica, estamos novamente em modo de negação generalizada. Não aprendemos com as bolhas anteriores e agora a coisa toma proporções históricas, pois não estamos falando de hippies ou de monges tibetanos. Hoje quem odeia o lucro e ignora as informações que os preços atuais dos ativos comunicam é Wall Street

Os excessos da cultura do venture capital foram potencializados pelas impressoras de bancos centrais mundo afora. O que fazer com tanto dinheiro sendo jogado nos mercados? Ora, investir no futuro: derramá-lo sobre as startups mais promissoras do mercado e colher os louros do sucesso digital no futuro.

Afinal, se a Amazon ficou longos anos sem dar lucro e ainda assim é uma poderosa gigante hoje, o que poderia haver de errado com esse pensamento? Muita coisa, a começar pela extrapolação da ideia de múltiplos de investimento que irradiou do Vale do Silício para tomar de assalto Wall Street e bolsas globais.

Múltiplos de empresas de software começaram a ser usados para empresas do ramo imobiliário que não têm 10% da capacidade de crescimento em escala dos negócios digitais. Alguém falou em WeWork? Acertou! A novela da We Company, controladora da famosa empresa de co-working, ganhou ares de crime cinematográfico.

Dezenas de bilhões de dólares investidos por alguns dos maiores fundos do planeta, como o SoftBank sob a liderança de Masayoshi Son, transformados em uma série de atitudes anti-éticas do CEO, seguidas por incapacidade de crescer na escala desejada e operando cada vez mais no vermelho. Seria cômico, se não fosse trágico e tivesse virado lugar comum no mundo dos investimentos.

Mas o que isso tem a ver com a sua vida? Como um japonês investindo bilhões afetou as coisas que muitos usam no dia a dia? Gerando incentivos ruins que se espalharam por boa parte da globalizada economia digital e foram parar na economia real. 

IMPACTOS NA VIDA DAS PESSOAS COMUNS

O trágico destino da WeWork não foi selado apenas por más práticas de suas lideranças no ambiente interno da companhia. A atuação do negócio gerou consequências seriíssimas no mercado imobiliário de grandes centros urbanos mundo afora, com destaque para Nova York e Londres.

Nas duas cidades, a empresa se firma como a maior inquilina de imóveis nas regiões de alto valor, a exemplo de Manhattan. As consequências de tamanha concentração combinada ao modelo e aos múltiplos de negócios potencialmente equivocados podem ser devastadoras, principalmente para pessoas comuns ou pequenos negócios com aluguéis nessas áreas.

Há quem estime que em determinados bairros o WeWork pode ter impacto superior a dois dígitos percentuais no valor dos aluguéis. Se num ciclo de expansão isso parece positivo para quem oferece imóveis e negativo para quem precisa alugar por lá, o mais crítico é pensar no efeito em cadeia de uma crise no modelo de negócios da companhia. 

E ela veio. Vendo-se obrigada a enxugar muito os custos, o negócio começou a se orientar nos últimos meses com base nas regiões em que opera com maiores margens e ocupações dos imóveis. Boa sorte a quem reside nas áreas de que a companhia saiu, pois podem passar por vasta desocupação ou alta volatilidade nos preços, impactando questões amplas como moradia, urbanização e viabilidade de pequenos negócios, além é claro dos preços de real estate em si.

Se em muitos países isso gera reflexões sobre uma eventual “manipulação” de mercado, com a AirBnB não foi diferente. Famosa por propiciar uma forma mais simples e menos burocrática de se realizar aluguéis por temporada, principalmente em viagens, o efeito do modelo de negócio da empresa ficou longe de ser sentido apenas por turistas.

Já nos 4 primeiros anos de operação nas grandes capitais europeias, o AirBnB foi apontado como o responsável por fazer com que o custo de moradia local em cidades como Berlim subisse mais de 56%. Isso levou a medidas intervencionistas extremas, como a proibição de aluguéis na plataforma por parte do governo local em 2016, sob pena de altíssimas multas. 

A autorização do uso aplicativo por lá foi restaurada em 2018, mas sob regras rigorosas e acompanhamento de múltiplas entidades. O objetivo era justamente evitar as consequências não antevistas no modelo de negócio da companhia, que prejudicaram residentes locais e consequentemente a própria organização e o sustento de pequenos negócios no longo-prazo. Longe de se tratar de algo pontual, regiões como Barcelona e Amsterdã também passaram por polêmicas semelhantes.

São dezenas de empresas que se tornaram artificialmente multibilionárias mesmo operando há anos no vermelho. “Dinheiro fácil” que chegou às mãos de hedge funds, criando valuations surreais até mesmo em negócios que mal poderiam parar de pé sem o constante influxo de mais e mais dinheiro. É essa injeção contínua de subsídios a responsável por vouchers, cupons, viagens grátis, descontos enormes e tantos outros benefícios. 

Benefícios que se mostram temporários mas existem por longos períodos. Tempo o suficiente para criar uma enorme base de clientes, por vezes chegando próxima a um estado de “dependência” diária de alguns desses apps, e para tirar diversos concorrentes da jogada. Até que a fonte seca e você não tem mais o serviço para usar e quem se valia dele para trabalho terá subitamente que buscar algo mais para fazer. 

Muitos apontam que isso ocorrer, passados alguns anos, até mesmo com consolidadas opções do mercado de mobilidade feito o Uber, caso não se valham da própria proeminência e inovação para repensar a forma como operam.

Aquele seu conhecido pode ter se enganado ao pensar que virou empreendedor nato, um futuro Steve Jobs, apenas porque esbarrou em mais uma oportunidade de crédito barato. Um monte de gente pode estar usando o app do momento, mas as chances de que ele não gere receita, não tenha lucratividade e tenha uma pequena sobrevida apenas enquanto houver “cupons” são enormes. E, como vimos, o negócio vai embora, mas as consequências dele a partir das distorções que causa no mercado ficam e se amplificam.

Às vezes se pode ter, inclusive, a impressão de que o mercado de venture capital em muitos setores está se tornando uma grande batata quente ou um esquema ponzi institucionalizado. Não se olha mais para a capacidade de gerar receita e diminuir custos, como os princípios básicos que constam em qualquer livro de Introdução à Economia nos ensinam há décadas. Observa-se apenas se posso entrar no jogo a X e vender minha parte a 10X daqui a 6 meses. 

A escassez deixou de ser um problema na pseudo-ciência econômica desses grupos. A construção de modelos de negócio razoáveis e até mesmo a necessidade de rápida adequação às condições de mercado deixaram de ser diferenciais cruciais para a sobrevida de uma startup. E não haverá pressa em mudar enquanto os incentivos continuarem poluídos. 

Sob a justificativa de que o crescimento em suas bases de usuários justifica a queima de caixa, tudo passou a ser válido. Sobra caixa no curto-prazo e falta bom senso no longo-prazo. 

E talvez sigam justificando assim para sempre, até que esse caixa acabe ou que os usuários desapareçam, no primeiro momento em que forem “convidados” a pagar o devido valor pelos serviços em questão. Aí não haverá resgates do governo, “pacotes de estímulo” ou fundos multibilionários que resolvam. 

Não haverá nada que o japonês possa fazer por você ou por eles. Pois o que a História e a Ciência nos ensinam é que não importa o quanto demore a conta sempre chega.

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